Sobre a inacessibilidade ao saber científico

No prefácio da segunda edição americana de História da Filosofia, publicado, em português, em 1959 pela Companhia Editora Nacional (com tradução de Godofredo Rangel e Monteiro Lobato), Will Durant discute um tema bastante atual. Trata-se da excessiva especialização da ciência de modo que cada vez mais “sabe cada vez mais de cada vez menos”. Discute-se também a impossibilidade de comunicação, pela linguagem cada vez mais técnica, entre os próprios cientistas. Quanto mais com a comunidade leiga. Não concordo com todas as afirmações do autor. Mas para ser justo, temos de considerar que o livro foi publicado originalmente em 1924 como The Story of Philosophy: the Lives and Opinions of the Greater Philosophers. Uma edição revisada foi publicada em 1933.

Mas é certo que a ciência, para cumprir sua função social, não pode ficar restrita à comunicação entre pares. Não é possível que um cientista não possa conversar com outro ou com um cidadão leigo. E se for esse o caminho a ser seguido, cada vez mais a ciência precisará de intermediários, de comunicadores de ciência que deverão ajudar o cientista a falar com a sociedade de não-cientistas. Clique aqui para ler um artigo sobre a crescente inacessibilidade á ciência (The Growing Inaccessibility of Science).

Discordo especialmente da afirmação de Durant sobre história (penso que Hobsbawm também discordaria). Ainda assim o texto é primoroso para refletir sobre a interação ciência-sociedade.

Boa leitura!

Prefácio da segunda edição americana

I

Os conhecimentos humanos tornaram-se vastíssimos; cada ciência gerou uma dúzia de ciências novas; o telescópio revelou estrelas e sistemas que o homem não pode enumerar, nem denominar; a geologia passou de milhares de anos a milhões; a física encontrou no átomo todo um universo, e a biologia descobriu na célula um microcosmos; a fisiologia revelou mistério infinitos em cada órgão, e a psicologia, em cada sonho; a antropologia reconstituiu a insuspeitada antiguidade do homem; a arqueologia desenterrou ruínas de cidades; a história provou que todas história é falsa e esboçou uma tela onde unicamente um Spengler ou um Eduard Meyer podem ter visão de conjunto; a teologia desmoronou; os credos políticos esboroaram-se;  a invenção complicou a vida e a guerra; e as teorias econômicas derrubaram governos e inflamaram o mundo; a própria filosofia, que sempre recorreu a todas as ciências para dar uma imagem aceitável do mundo e uma atrativa concepção do Bem, verificou que sua tarefa coordenadora era maior que a sua coragem, fugiu de todos os “fronts” da verdade e ocultou-se em desvão abrigados, timidamente a seguro das responsabilidades da vida. O conhecimento humano tornou-se muito grande para a mente humana.

O que ficou foi o especialista científico que “conhece mais e mais a respeito de menos e menos”; e também o especulador filosófico que sabe menos e menos a respeito de mais e mais. O especialista armou-se de viseiras para restringir o campo de visão; some-se o mundo para que fique um pontinho só a esmiuçar. Perdeu-se a perspectiva. “Fatos” substituíram a compreensão; e o conhecimento, cindido em mil partes isoladas, não mais deu como resultado sabedoria. Cada ciência e cada ramo da filosofia geraram uma terminologia técnica apenas inteligível para os iniciados; quanto mais o homem aprendia sobre o mundo menos se achava apto a exprimir aos outros as coisas que tinha aprendido. O hiato entre a vida e o conhecimento foi-se alargando cada vez mais; os que governavam não podiam entender os que pensavam e os que queriam saber não podiam entender os que sabiam.  No meio duma erudição sem precedentes a ignorância popular florescia; ao lado das ciências entronizadas e financiadas como nunca foram, novas religiões vinham a furo e velhas superstições reconquistavam o terreno perdido.  O homem comum via-se forçado a escolher entre um sacerdócio científico que resmoneava ininteligível pessimismo e um sacerdócio teológico que acenava com esperanças incríveis.

Numa situação destas a função do mestre profissional fez-se clara. Tinha de ser o intermediário entre o especialista e o povo, tinha de aprender a linguagem do especialista, como este aprendia a linguagem da natureza, e desse modo romper as barreiras erguidas entre o conhecimento e a necessidade de aprender, descobrindo meios de expressar as novas verdades em termos velhos que toda gente entendesse. Isso porque se o conhecimento se desenvolve demais a ponto de perder o contato com o homem comum degenera em escolástica e na imposição do magister; o gênero humano encaminhar-se-ia para uma nova era de fé, adoração e distanciamento respeitoso dos novos sacerdotes; a civilização, que desejava erguer-se sobre uma larga disseminação da cultura, ficaria, precariamente baseada sobre uma erudição técnica, monopólio duma classe fechada e monasticamente separada do mundo pelo orgulho aristocrático da terminologia. Não admira, pois que todo o mundo aplaudisse quando James Harvey Robinson deu o brado para a remoção de todas estas barreiras e consequentemente humanização do conhecimento. (Durant, 1959, p.5)

Referência:

Durant, W. (1959). História da Filosofia – vida e ideias dos grandes filósofos.  São Paulo: Companhia Editora Nacional (10ª edição, trad. Godofredo Rangel e Monteiro Lobato).