Economia doméstica e arte da negociação

Economia doméstica

Euclides de Andrade

Na residência de um casal “modern-style”, às 10 da manhã, Renato Silveira e Mme. Silveira acabam de tomar o seu café com leite.

Ele – (levantando-se e atirando o guardanapo para cima da mesa. Bem, meu amor, cá me vou à vida: até logo.

Ela – (cobrindo de manteiga uma côdea de pão). Até logo, benzinho. Olha… Tu vens almoçar hoje à casa?

Ele – Não posso. Hoje é dia de mala para a Europa e tenho muito que fazer no escritório. Almoçarei na cidade. Virei jantar às 7 horas da noite.

Ela – Nesse caso, vou sair depois do almoço, sim?…

Ele – Aonde vais?

Ela – À cidade, fazer umas compras … A proposito: Tens ai, dinheiro?

Ele – Tenho.  De quanto precisas?

Ela – De pouco, para umas comprinhas insignificantes: uma peça de entremeio, que a costureira mandou-me pedir; uma carta de alfinetes, um maço de grampos … (Pausa).

Duzentos mil réis dar-me-ao-prá tudo …

Ele – Vê lá… Para comprares um maço de grampos , uma peça de entremeio e uma carta de alfinetes talvez os duzentos mil réis não sejam suficientes … pede mais, querida. A ordem é rica e os frades são poucos…

Ela – Achas muitos? Se soubesses como a crise na Europa repercutiu no Brasil … Está hoje tudo pela hora da morte…

Ele –É… Tens razão. A crise … é pavorosa. Entao, ficas satisfeitas com 200$000?

Ela –Fico. Mas, olha lá, benzinho; se achas muito, dá-me apenas 100$000 e eu … quando chegar à cidade, passarei pelo escritório para que me dês os outros cem.

Ele – (irônico). Não é preciso. Para que hás de fazer economias, meu amor? Temos apenas oito filhos e eles, quando crescerem que se arranjem…

Ela – Como tu és mau, Renato! Então pretendes deixar as crianças sem nada, quando morreres?

Ele – (cada vez mais irônico). Creio que sim. Se continuarmos pelo caminho em que vamos…

Ela – (admirada). Que dizes, Renato?! Achas então que estamos gastando muito?

Ele – Qual … Eu disse isso?¹

Ela – Não, mas pelas tuas palavras, tirei esta conclusão.

Mas olha: se achas necessário que economizemos, o melhor é tirarmos os pequenos do colégio – eles já sabem o suficiente para ganharem a vida quando forem homens – tu venderás a tua “voiturette”…

Ele – E tu, a tua limusine…

Ela – A minha limusine?! E, depois, como farei, quando tiver de ir à cidade, às minhas compras?

Ele – (com paciência evangélica). Irás de bonde, como toda gente.

Ela – Estás doido, filho?! Queres que as Mendonças se riam de nós? Era só o que faltava!… Se elas, agora, já dizem que, neste andar, terminaremos implorando a caridade pública, à porta de uma igreja, que não diriam, como não se haveriam de rir, quando soubessem que vendi a minha limusine?! Não Renato, não, meu amor. Noblesse oblige

Ele – Bem, são horas de ir para o trabalho. De quanto precisas, então, para os teus alfinetes?

Ela – (distraidamente, olhos perdidos no espaço). De quinhentos mil reias…

Ele – Será possível que neste pequeno lapso de tempo que levamos a palestrar, tenham os alfinetes subido de preço?!

Ela – (rindo). Quem sabe?… A crise na Europa… (pausa) Mas falemos a sério, Renato. Achas muito quinhentos mil réis?

Ele – Não acho. De que me vale achar muito? Precisas, não é assim?

Ela – É…Preciso…Tenho que comprar uma peça de entremeio…

Ele – Já sei…! Uma peça de entremeio, uma carta de alfinetes e um maço de grampos…

Ela – Estás zangadinho comigo, Renato? Olha: se é  para ficares aborrecido, não é preciso que me dês os 500$000. Dá-me apenas 450$000.

Ele – Qual aborrecido!… Mas, vamos a saber: vais apenas à loja comprar alfinetes ou tens que fazer algumas visitas?

Ela – Não faço visitas hoje. Irei primeiro à Casa Ferreira comprar os alfinetes, depois irei à joalheria… –oh! descansa;  é só para ver as novidades – à costureira, ao “five-oclock tea” no Alhambra e voltarei para casa, passando de caminho pelo Municipal, a fim de avisar que ficas com a assinatura para o Lírico.

Ele – Quer dizer que só às 7 estarás em casa?

Ela – Achas muito tarde? Se achas, sê franco, que eu virei às seis e três quartos. E, sabe uma coisa? Para não andares sempre a ralhar comigo, voltarei de bonde para fazer economias. Tens razão, Renato, é preciso que façamos economias…

Ele –Qual! Eu estava a brincar contigo.

Ela – Não , senhor. É preciso que sejamos econômicos.

Do princípio do mês em diante vou dizer ao pequeno dos jornais que não precisa trazer-me a folha. Assim economizaremos 3$000 por mês, não é? É preciso economizar. Renato, economizar muito…

Ele – Bem. Até logo.

Ela – Até logo, meu amor. Economia, ouvintes, muita economia!…Olhas, Renato!

Ele – Que queres!

Ela – É que tu ias esquecendo de me dares os 500$000 para comprar os alfinetes…

 

Referência

Andrade, E. (1952). Economia Doméstica. Em Páginas Floridas, Francisco de Silveira Bueno. São Paulo: Saraiva.