Quem nunca se incomodou em alguma medida com crítica de um professor, amigo, revisor sobre o próprio manuscrito? Da minha parte, prefiro a crítica sincera, por mais dura que seja, que o aplauso vazio, descomprometido, que nada acrescenta para a melhoria do texto. Elogios cegam; críticas honestas ampliam o olhar do autor. O que um escritor precisa, sobretudo dos leitores de suas versões iniciais, são olhares ampliados que o ajudem a enxergar problemas no próprio trabalho antes que seja publicado. Acredito que mais vale uma crítica sincera que mil aplausos vazios.
Para exemplificar uma crítica bem feita, embora dura, áspera – pelo menos é essa a sensação que temos ao iniciar a leitura, mas que vai se modificando à medida que avançamos no texto – sugiro a leitura desta crítica de Mario de Andrade a um romance de Sergio Milliet (Duas cartas no meu destino, Guaira, 1941). A crítica deu-se em carta enviada a Milliet em novembro de 1938 e faz parte do livro Mário de Andrade por ele mesmo, de Paulo Duarte (Edart, 1971, pp. 306-312)[1].
Dentro do possível, procurei preservar a forma de escrita original de Mario de Andrade, que estava em conformidade com as regras gramaticais da época. Mas nos casos em que o corretor do Word modificou automaticamente acentuação das palavras não alterei. Vou compartilhar a crítica de Mario de Andrade em dois posts: neste primeiro post transcrevo comentários gerais dele sobre a obra em questão, sua interpretação sobre o estilo de Milliet, enfim, uma aula do grande escritor sobre arte. No segundo post transcreverei comentários de Mario de Andrade sobre partes específicas do texto, que ele generosamente classificou como erros de datilografia. Segue a primeira parte da Carta-crítica de Mario de Andrade.:
Rio, 3-XI-38
Olha Sérgio, não sei se já falei, quando foi do seu outro romance que você me deu para opinar, antes da publicação, não sei se já lhe falei com toda a asperidade de amigo, o que penso da literatura de você. E sempre me fica um remorso de não ser inteiramente amigo, como gosto. Aqui vai minha opinião com o máximo de brutalidade, que o comentário em seguida, igualmente sincero, adornará de maior perfeição.
Você é exatamente o tipo do que, em esporte, a gente chama de reserva do primeiro time. Um tempo andei pensando que você era elemento do segundo time, ótimo, mas no segundo time, porém, depois pensei milhor, com mais frieza de exatidão, mesmo porque sentia vagamente que pensar você segundo time era injustiça. E era mesmo, sem que nessa minha mudança, ou milhor, concerto de opinião, entre a mínima parcela do afeto de amizade que é muito grande, nem a enorme admiração que tenho pelos seus dotes de trabalho, de poder de organizar e dirigir as coisas. Não, você positivamente não é segundo time, você está no primeiro. Mas como reserva.
Quero dizer: há em você uma estranha incapacidade pra criar a coisa marcante, a coisa que, mesmo quando não abre caminho, faz prosélitos. Isto não quer dizer que você seja, um originalíssimo, um inaferrável, enfim uma espécie de “fauve” solitário. Não, você não é nada disso e está bem dentro da nossa corrente geral de literatura. Mas há uma incapacidade qualquer em você pra, ou pelo tratamento do material, ou pela invenção dos assuntos, ser o que, como material, é por exemplo um Machado de Assis, ou, como temática, é um Raul Popéia ou Lins do Rego. A palavra mesmo bem fiel que exprime o que eu penso é “marcação”: você não marca, você não faz obras marcantes. Está claro que “marcar” de forma alguma implica sempre maior perfeição. Pelo contrário, no geral os Shakespeare, os Da Vinci, os Beethoven de todas as artes, são muito mais imperfeitos que… as reservas. É muito raro, e quase sempre francês…, a gente encontrar obra que seja marcante e ao mesmo tempo exemplo de perfeição, como La Fontaine, Racine, Cézanne, (e assim mesmo…) Bach.
O que é uma reserva de primeiro time? Não é um Leonidas, um Friedenreich marcantíssimos, mas irregulares, e que lá vem sempre um dia em que jogam mal, e não jogam nunca sem fazer alguma besteira. O reserva é o jogador excelente e que em qualquer circunstância, com chuva ou sol nos olhos, campo pesado ou juiz gatuno, joga sempre muito bem; não há como ele pra substituir na certa os potros demasiados sensíveis. E porisso irregulares.
Aquele dia que disse ir começar a leitura do seu livro, circunstâncias, que não vêm ao caso, me impediram de fazer o prometido. Foi apenas um início de leitura que não mais retornei por excesso de preocupações nestes dias em que estou estudando essa desnorteante Renascença pros meus alunos. Mas hoje, sábado, principiei de-manhã a leitura, repeguei o livro depois de uma pequena ida ao meu Instituto e não pude parar mais, são quinze e meia e acabei de ler. O livro é ótimo. Uma prova que me empolgou está nas notas que tomei. No princípio com muita atenção, pgs. 1, 2,5, 12, 16, 17, 22, depois já não achei nada e até a página 28, e então foi a corrida final, só na página 74 me lembrei de novo de analisar o escrito.
Gostei muito dos dois personagens femininos, apesar de menos analisados que o Fernando, estão muito palpáveis, muito explicáveis, muito humanos. Ah, não será por ventura do tom autobiográfico dos seus livros, da analise antiartísticamente muito sincera que você faz dum Roberto [publicado em 1935] ou dum Fernando, justamente a tal ou qual mornidão, a como que espécie de falta de realidade, ou pelo menos de vigor do real, destes seus personagens masculinos? Você decerto conhece a anedota francesa do escritor realista, não me lembro se Maupassant, que copiou num romance, nem tirar nem por, um diálogo escutado, diálogo este que foi justamente censurado pela crítica por falta de realidade. Da mesma forma que o Roberto, o seu Fernando chega a ser virulentamente autobiográfico e nesse sentido o livro tem um sabor de intriga de que muita gente vai se aproveitar pra comentários discretamente sussurrados entre movimentos de comiseração de cabeça, é pau isso. Não me importo, Sergio, nem estou perguntando, se se trata ou não de autobiografia; mas há incontestável um sabor de autobiografia danado. Ora essa transcrição de si mesmo leva sempre a um tal ou qual cinzentismo, a uma desvigoração natural em arte, que, mesmo quando está fazendo análise, está fazendo uma síntese. Por exemplo: dois caracteres marcantes do Fernando deste livro são o egoísmo e a abulia. Se trata positivamente, no livro, de um indivíduo muito sem vontade, ou milhor, sem a coragem das próprias vontades. O dualismo do Roberto se acentua neste livro de agora, num caso muito mais grave: o da legalização sacral do casamento, a que até os comunistas de alguma forma voltaram. Fernando se desespera abulicamente entre o burguesinho e o lírico que traz em si. Mas a luta não chega a um esplendor de psicologia. Há abulia mas esta não vem sintetizada em frases essenciais. Há egoísmo, você chega a pronunciar esta palavra, mas a natural contemplatividade com que todos nós nos observamos complacentemente em nossas vidas, não permite a você salientar com vigor o que há de odioso no egoísmo. Há cinismo, palavra que você mesmo pronuncia, mas você também aqui não salienta a indecência do cinismo de natureza psicológica. Mesmo porque, meu Deus! êle não é de-fato indecente na psicologia de cada um, é apenas, em cada um, a mesma fatalidade da unha que a gente corta mas torna a crescer e carece cortar outra vez. Agora: o livro reverte sempre a um universal, a obra-de-arte é sempre uma síntese nesse sentido. E é neste sentido, que a obra-de-arte mais imoral, mais porca, mais indecente, é sempre moral, é sempre limpa, é sempre decente. A contradição intrínseca que me parece peculiar aos seus romances, e enfraquece o vigor dos personagens principais deles, é essa. Na análise dos outros seres, porisso mesmo eles não são você, você os sintetiza com maior vigor de realidade universal, ao passo que nos seus personagens masculinos principais, você nunca os universaliza suficientemente pra que fiquem no primeiro plano necessário. Talvez haja um bocado de masoquismo na odiosidade que você deu a Fernando mas Fernando não chega a ser vigorosamente odioso pra que a gente tenha vontade de matar ele. Não se chega a tomar partido por esplendor, isto é, por sensação estética. Só tomará partido moralista que, depois de lido o livro, ou no entremeio das leituras, pra refletir sobre morais, e então verifica dogmaticamente: que canalhinha, puxa! devemos isolá-lo da SUCIEDADE! – Agora: suponhamos que você não queira dar ao seu personagem essa dominante de ruindade, mas apenas de abulia digna de comiseração. Era então a luta entre o anjo e o demônio, a incapacidade de domínio sobre um destes que você tinha de focalizar com mais luz no seu Fernando. Não terá você querido ser sincero com a vida , em vez de o ser com a arte, que é o que você está fazendo?…
Bem, mas êste tal ou qual cinzentismo do personagem principal não impede absolutamente que ele viva no livro, está claro. E viva bem. O livro está impregnante, e você soube muito bem dosar o interesse e equilíbrio das partes, apenas de leve acenando pra alguma coisa extraordinária que vai suceder e que a gente fica esperando sem impaciência. Quando vem a anedota, a positivamente anedota do fim, é uma delícia. Depois, a gente pensando, fica com um pouco de raiva da anedota, pelo lado moralista que ela tem sem querer. Parece mesmo um castigo pro Fernando, em que a gente não pode pensar sem sorrir satisfeito. Esse safado estava gozado duas mulheres interessantes, bem feito. Mas o fato é que a anedota chega no ponto e é absolutamente inesperada.
Assim: penso que absolutamente você não deve duvidar do valor do seu livro, ele é excelente por muitas razões; e o senão, não conceptivo, mas de realização que apontei não é em nada tão grosso que impeça o valor do livro. Que deve ser publicado. Tem maior unidade que o Roberto. Ia dizer que este é mais divertido em sua maior variedade de situações, mas nem isso posso dizer por mim, pois que este me empolgou.
[1] Exemplar autografado por Paulo Duarte a Nogueira Martinho, como podemos ver na imagem abaixo.